
CURRÍCULO – UM GRANDE DESAFIO PARA O PROFESSOR1
Nereide Saviani2
Falar de currículo como desafio para o professor remete para a discussão de processos de elaboração e implementação curriculares, os quais
deveriam, necessariamente, contar com a efetiva participação de docentes dos
vários graus, níveis e modalidades de ensino, em todas as disciplinas e séries, de forma integrada. Digo deveriam, porque, no mais das vezes, isto não
ocorre. Garantir tal participação é,
talvez, o principal desafio. [...]3
Tenho tido oportunidade de discutir questões de currículo em diversos
eventos (...) e artigos4, [nos quais] abordo aspectos implicados na concepção
de currículo e analiso como eles se manifestam em prescrições curriculares,
para refletir sobre sua repercussão no desenvolvimento do currículo em situações concretas. Penso que não é demais retomá-los, ainda que sinteticamente, quando se trata
de refletir sobre os desafios
que se colocam para a atividade docente, nesse âmbito.
Elementos constitutivos
do currículo
O currículo diz respeito a seleção, seqüência e dosagem
de conteúdos da cultura a serem desenvolvidos em situações
de ensino-aprendizagem. Compreende conhecimentos, idéias, hábitos, valores,
convicções, técnicas,
recursos, artefatos, procedimentos, símbolos etc... dispostos em conjuntos de
1 Texto referente à palestra proferida a 05/12/02, no Ciclo de Conferências promovido pela Apeoesp – São
Paulo/SP. Publicado em Revista de Educação. Nº 16. São
Paulo, 2003 – pp. 35-38.
2 Doutora em Educação pela PUCSP e professora do Mestrado
em Educação da Universidade Católica de Santos – UniSantos.
3 Na presente
versão, foram
suprimidos ou modificados os trechos em que me dirijo especificamente à entidade
promotora
do evento mencionado.
4 Destaco, entre outros: Saviani,
1995; 1996; 2000.
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matérias/disciplinas escolares
e respectivos programas, com indicações de
atividades/experiências para sua
consolidação e avaliação.
Há quem o considere mera transposição dos saberes/fazeres de referência para a sala de aula, mas é sabido que o modo como os elementos culturais são organizados em situações escolares apresenta certa singularidade, que constitui um tipo peculiar de saber – o saber
escolar. Na prática,
o currículo tem se revelado uma espécie de reinvenção da cultura. Estudos sobre a história do currículo e a história das disciplinas escolares demonstram que a
produção e veiculação do saber escolar seguem trajetórias sinuosas e
tumultuadas, num processo de lutas
de diversas dimensões.
Enquanto seleção de elementos da cultura, a definição dos contornos de
um currículo é sempre
uma, dentre muitas
escolhas possíveis. Assim, a
elaboração e a implementação do currículo
resultam de processos conflituosos, com decisões
necessariamente negociadas. E, como tenho insistido, a principal negociação é a que ocorre na relação
pedagógica propriamente dita, quando professores/as redefinem a programação, segundo as peculiaridades de cada turma, nas condições (possibilidades e limites, seus e dos alunos/as) para desenvolvê-la e vão freqüentemente
alterando-a, a partir
do modo como os discentes a ela
respondem.
A organização curricular consiste, portanto, no conjunto de atividades desenvolvidas pela escola, na distribuição das disciplinas/áreas de estudo (as
matérias, ou componentes curriculares), por série, grau, nível, modalidade de ensino
e respectiva carga-horária – aquilo que se convencionou chamar de “grade
curricular”. Compreende também os programas, que dispõem os
conteúdos básicos de cada componente e as indicações metodológicas para seu
desenvolvimento. Por conseguinte, a organização curricular supõe a organização do trabalho pedagógico. Isto quer dizer que o saber escolar,
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organizado e disposto especificamente para fins de ensino-aprendizagem, compreende não só aspectos ligados à seleção dos conteúdos, mas também os referentes a métodos,
procedimentos, técnicas, recursos empregados na
educação escolar. Consubstancia-se, pois, tanto no Currículo quanto na Didática.
Problemas básicos
implicados no tratamento do currículo
De acordo com Gimeno
Sacristan (1998) – pesquisador espanhol,
estudioso de questões curriculares e preocupado com problemas
da escola pública – o currículo deve ser entendido como processo, que envolve uma multiplicidade de relações,
abertas ou tácitas, em diversos âmbitos, que vão da prescrição à ação, das decisões administrativas às práticas pedagógicas, na escola como instituição e nas unidades escolares especificamente. Para
compreendê-lo e, principalmente, para elaborá-lo e implementá-lo de modo a
transformar o ensino, é preciso refletir sobre grandes questões, como as que seguem:
“Que objetivos, no nível de que
se trate, o ensino
deve perseguir?
O que ensinar, ou que valores, atitudes e conhecimentos estão implicados nos
objetivos?
Quem está autorizado a participar nas decisões do conteúdo da escolaridade?
Por que ensinar o que se ensina, deixando de lado muitas outras
coisas? Trata-se
da justificativa
do conteúdo.
Todos esses objetivos devem ser para todos os alunos/as ou somente para alguns deles?
Quem tem melhor acesso às formas legítimas de conhecimento?
Esses conhecimentos servem a quais
interesses?
Que processos incidem e transformam as decisões tomadas até que se tornem prática real?
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Como se transmite a cultura escolar nas aulas e como deveria se fazer? [Já que a forma
de ensinar
não é
neutra quanto ao conteúdo do ensinado].
Como inter-relacionar os conteúdos selecionados
oferecendo um conjunto coerente
para os alunos/as?
Com que recursos metodológicos, ou com que materiais ensinar?
Que organização de grupos, professores/as, tempo e espaço convém
adotar?
Quem deve definir e controlar o que é êxito e o que é fracasso no ensino?
Como saber se houve êxito ou não no ensino e quais conseqüências
têm sobre o
mesmo as
formas de avaliação dominantes?
Como podem se mudar as práticas escolares relacionadas com esses temas?”
(Gimeno Sacristan,
pp. 124-125)
O currículo como processo
Para esse autor, o currículo como processo se expressa em diversos âmbitos de decisões e realizações, intimamente relacionados e interdependentes, quais sejam: a) o âmbito das decisões políticas e administrativas: o currículo prescrito e
regulamentado; b) o das práticas de
desenvolvimento, modelos em materiais, guias: o currículo planejado para
professores e alunos; c) o das práticas organizativas: o currículo organizado no contexto de uma escola; d) o da reelaboração na prática – transformações
no pensamento e no plano dos professores/as, e nas tarefas escolares: o
currículo em ação; e) o das práticas de controle
internas e externas: o currículo
avaliado. (Cf. idem, idem, p.139).
Eis como pode
ser descrita essa dinâmica:
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“Uma análise superficial do que se faz para elaborar, implantar e desenvolver
um currículo
nos diz que nesses processos participam múltiplas ações fora das instituições escolares e dentro delas, umas de caráter pedagógico e outras
não, que determinam
a prática real: prescreve-se desde os âmbitos político-administrativos;
ordena-se dentro do sistema educacional segundo especializações,
ciclos e
cursos; decide-se o
que é para todos e o
que é
optativo; planeja-se antes de que chegue aos professores/as por meio de
orientações administrativas; organiza-se e planeja-se nas escolas (atribuição de especialização a
professores/as, organização de
professores/as por disciplinas ou para várias delas, previsão
de horários condicionantes das atividades, módulos de tempo com diferentes valores, adoção de linhas metodológicas em disciplinas ou departamentos, dá-se prioridade
a partes
dos programas etc); o currículo
é moldado
pelos professores/as em seus planos e
em sua prática metodológica; sobre o currículo
decidem as editoras de livros didáticos
ao concretizar diretrizes gerais,
dado que as decisões
são sempre interpretáveis e
flexíveis; os professores/as avaliam o currículo, às vezes por provas de homologação externas; o
currículo é
objeto de políticas e
táticas para mudá-lo. Entre todos esses processos se
dão dependências e
incoerências, porque cada âmbito
de atividade prática tem uma certa
autonomia em seu
funcionamento”. (idem, idem, p. 140).
O Currículo na Ação
Este é – ou deveria ser – o ponto de convergência de todos os outros
âmbitos, por constituir-se espaço de consolidação do processo de ensino-aprendizagem,
a razão de ser da própria instituição escolar.
Infelizmente, temos assistido à predominância de práticas hierarquizantes, burocráticas, de cunho altamente autoritário, que compreendem a elaboração
curricular como algo adstrito a especialistas, em gabinete, nos níveis mais elevados do sistema, relegando-se às demais instâncias papel meramente executivo e colocando os professores no final da linha, desprovidos do
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domínio dos fundamentos das decisões tomadas em outros patamares e sem o
controle dos aspectos relativos à avaliação, ultimamente marcada por averiguações externas. (...) Urge superar
essa lógica, garantindo-se maior espaço
de participação dos professores nas decisões, o que requer, necessariamente, investimento efetivo
na sua formação, para permitir-lhes
igualdade de condições nas negociações: fundamentação teórica sobre
os diversos aspectos constituintes do desenvolvimento do processo pedagógico;
domínio das concepções de currículo e suas implicações práticas; visão de
conjunto do sistema educacional,
diagnóstico preciso de seus principais
problemas e acesso às possibilidades
de solução.
Um dos principais aspectos a se considerar, no currículo em ação,
é a organização do tempo e do espaço escolares, que diz respeito às condições de
ensino-aprendizagem. Pólos indissociáveis de um mesmo processo, o ensino e a aprendizagem precisam ser vistos nas suas necessidades
essenciais, que
ultrapassam as paredes da sala de aula e os muros da escola. O tempo de ensino supõe a formação (inicial e continuada) do professor e inclui o preparo,
a execução e a avaliação das atividades. O tempo de aprendizagem exige que se considerem os diferentes ritmos e experiências, carecendo
de diferentes
oportunidades, para a devida mediação entre o que o aluno consegue realizar sozinho e aquilo que exige a mediação pedagógica. Relacionados aos diferentes tempos, há que se forjar os adequados espaços,
com os imprescindíveis recursos.
O tratamento dispensado à relação tempo/espaço/recursos funciona
como
um “termômetro”, indica
a concepção de escola e trabalho pedagógico
que alimenta as políticas educacionais adotadas, fornece a dimensão de proximidade/distanciamento entre os objetivos educacionais proclamados e os
efetivamente perseguidos e realizados. Na lógica do mercado, a educação é
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tratada como mercadoria, cujo valor se determina pelo tempo socialmente necessário para sua produção. Predomina a busca por melhor relação custo/benefício, que se situa no menor dispêndio de tempo possível, com o
máximo de “eficiência”. A formação do professor é tão mais desejável quanto mais breve, menos acadêmica. Aos alunos, prefere-se destinar cursos rápidos, em turmas grandes, buscando-se o uso “racional” dos espaços
e equipamentos. Medidas compensatórias são tomadas para “recuperação” do tempo perdido.
Numa visão de formação plena, ao contrário, as demandas educacionais são infinitas e a tendência deve ser a de aumentar o tempo destinado ao acesso à cultura, nas suas múltiplas manifestações – o que exige diversificação de espaços
e recursos.
Desafios para o professor
Os elementos apontados parecem dizer por si sós. São todos, imensos
desafios. Para enfrentá-los, é mister
que o professor tenha o domínio dos
fundamentos teóricos e históricos dos processos
de elaboração e
implementação do currículo, que, afinal,
dizem respeito à natureza de sua
função, ou seja, a organização do trabalho pedagógico. Obviamente, isto não
se faz sem a urgente melhoria
das condições de funcionamento das escolas e das
condições de trabalho do professor (formação, jornada, salário). Tal
melhoria exige, sem dúvida, mudanças
na política educacional e nas políticas
públicas em geral, com ações concretas em âmbito institucional (no sistema de
ensino, nas unidades escolares). Uma nova perspectiva, porém, não se atinge sem a deflagração de amplo e efetivo movimento
de educadores, estudantes e
de toda a população, em suas organizações.
[...]
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Concluindo, peço licença para transcrever trechos de um texto (Saviani,
1995) que escrevi em outro momento,
mas que tem tudo a ver com o tema ora
em debate:
“Não é possível continuar-se sonegando aos professores em geral
(e do ensino básico em particular) os fundamentos do seu próprio trabalho.
Além dos conhecimentos
ligados às matérias que
lecionam, eles não podem ficar
alheios às polêmicas atuais sobre problemas
de currículos e programas, sua relação com questões didáticas e as
raízes históricas e matrizes teóricas das concepções de educação escolar que embasam as propostas curriculares sobre as quais se
vêem obrigados a tomar decisões.
Também não lhes pode faltar a fundamentação sobre as características das ciências na atualidade, sua tendência sintética, sua relação de diferenciação /
integração,
sua transformação em força produtiva direta.
(...)
... permito-me
sugerir que os educadores coloquem-se o desafio de diminuir
as desigualdades de condições nas
negociações relativas às tomadas de decisão sobre o saber
escolar (sua produção, sua organização em currículos e programas, as condições para sua veiculação). (...) (Saviani, N.,
op.cit., p. 31).
REFERÊNCIAS
GIMENO SACRISTAN,
J. “Currículo: os conteúdos do ensino ou uma análise da prática?”
In: Gimeno Sacristan, J. y Pérez Gomes, A. I. Compreender
e transformar o
ensino. Porto
Alegre: Artmed, 1998, 4ª ed. – pp.
119-148.
SAVIANI, Nereide. A conversão do conhecimento científico em saber escolar:
uma luta inglória?
Revista do SINPEEM.
N 2. São Paulo, 1995 – pp. 27-32.
________________. Elaboração e Implementação do Currículo:
alguns enfoques e problemas atuais.
Revista do SIMPEEM,
N. 3, São Paulo, fevereiro de1996, pp. 9-14. ________________. Bases legais e conceituais da reforma curricular do Ensino Médio no
Estado de São Paulo. Revista de Educação. São
Paulo: Apeoesp. N. 11, agosto de 2000.
São Vicente,
outubro de 2005.
Nereide Saviani